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C O L U N
A D E E C O N O M I A
01 /
MARÇO / 2007
CALOTE CONSTITUCIONALIZADO
Por Marcos Cintra
(*)
Quo usque tandem abutere,
Catilina, patientia nostra?
(Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?),
Cícero, 106-43 a.C.
ESTÁ EM tramitação no Senado uma proposta indecente: um projeto de emenda
à Constituição que, se aprovado, comprova exuberantemente a tibieza do caráter
cívico dos brasileiros, que tudo aceitam, tudo acomodam, mesmo sendo alvos das
mais odiosas injustiças e perversidades.
Não estou me referindo à violência física que grassa livremente em nosso
país. Por sinal, já assinei o manifesto virtual que circula na internet a favor
de medidas urgentes para evitar que continuem ocorrendo barbaridades como a que
acometeu o menino João Hélio. Mas não consigo evitar o mal-estar no estômago ao
imaginar que, como antes, nada vai acontecer.
Lembro-me dos inúmeros outros momentos de extrema comoção causados por
crimes bárbaros cometidos contra outros inocentes e que não resultaram em
nenhuma providência efetiva contra o estado de barbárie que impera no Brasil.
Sempre surgem os "comedidos", os que apelam a um tipo imbecil de
serenidade que acaba impedindo a sociedade de se defender e de adotar medidas
emergenciais capazes de atenuar os males que a afligem. As soluções são sempre
adiadas, à espera de momento mais oportuno, de menor emoção. Essa ridícula
tolerância torna o brasileiro uma população de seres destituídos de vontade, de
sentimento de indignação e, sobretudo, sem capacidade de mudar, de reformar, de
melhorar.
Essa tolerância, que, como disse Marquês de Sade, é a virtude dos fracos,
tem tornado o Brasil um país de néscios, de indiferentes, de egoístas e de
mortos-vivos sem sangue nas veias. Vivemos em uma geléia geral, sem princípios,
sem regras, sem destino, em que vale tudo, onde impera a truculência do mais
forte na política, na economia, na vida urbana, nas relações pessoais.
O projeto de emenda constitucional nº 12/2006 é mais uma dessas
infamantes propostas que revelam desprezo pelos cidadãos. Pelo projeto, a União,
os Estados e os municípios poderão "optar, por ato do Poder Executivo", e
definir o percentual (mínimo de 3% para Estados e 1,5% para municípios) de suas
despesas primárias líquidas que será utilizado no pagamento de precatórios. O
pagamento será feito em grande parte mediante leilões, nos quais os desesperados
credores, tal qual os gladiadores na Roma Antiga, vão se trucidar mutuamente
para receberem frações ínfimas do que lhes é devido.
É evidente que os 3% serão teto, e não piso, dos pagamentos. Algumas
contas elementares mostrarão que a grande maioria dos governos que têm
precatórios a pagar poderá jamais saldar integralmente as dívidas contraídas,
mesmo tendo sofrido condenação pelo Poder Judiciário, sob pena de intervenção,
segundo a Constituição.
Se aprovado, o Estado continuará espezinhando os direitos dos cidadãos
brasileiros que têm valores a receber do governo; a Carta Magna continuará sendo
desrespeitada pelo próprio Poder Judiciário, que tolerantemente não decreta as
intervenções; e os políticos continuarão a zombar até mesmo daqueles que têm
precatórios alimentares a receber. Os precatórios devidos apenas pelos Estados,
pelo Distrito Federal e pelos municípios somam cerca de R$ 63 bilhões. Isso dá
uma idéia do tamanho do calote. São Paulo, o mais rico -e pretensamente saneado
- Estado da Federação, pagou no ano passado precatórios alimentares que
deveriam ter sido quitados em 1998.
O Estado esquizofrênico mostra suas duas faces: o mau pagador de um lado
e o eficiente agente arrecadador de outro, aprimorando sempre suas garras
fiscais, como acaba de fazer com a criação da Super-Receita.
A aprovação da PEC 12/2006 é o calote constitucionalizado. Como diz a
Ordem dos Advogados do Brasil, "a PEC viola a coisa julgada, o direito
adquirido, a moralidade administrativa e a dignidade da pessoa humana". Vale
dizer que os direitos dos credores do governo já foram legislativamente
violentados duas vezes. A primeira, quando foram parcelados em oito vezes
(1988); a segunda, em mais dez vezes (2000). E agora mais essa indignidade.
A paciência se aproxima tanto do desespero que só nos resta alertar, como
fez o poeta inglês J. Dryden, a tomar "cuidado com a fúria do homem paciente".
(*) Marcos Cintra, 60 anos,
doutor pela Universidade de Harvard, vice-presidente e professor-titular da
Fundação Getúlio Vargas, é ex-deputado federal (1999/2003),
ex-Secretário Municipal de São Bernardo do Campo (SP) e autor de "A verdade
sobre o imposto único" (LCTE, 2003).
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