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- E D I T O R I A L -
01 / MARÇO / 2008

ESPECIAL DE VERÃO V
O feitiço Tupynambá (*)

            Acocorei-me, indoutro dia, em frente dum quadro, fascinado com o que via. Arte pr’eu, sabem-no os leitores, é vício grave, verdadeira cachaça, no que, aliás, não estou sozinho. Mas voltemos lá para o quadro diante do qual me deixei ficar de cócoras, já que, em lugar de pendurado, estava ainda encostado à parede, obrigando-me ao esforço e às inevitáveis câimbras, se já eram dolorosas na juventude, são agora ainda mais lancinantes. Sobre uma placa de eucatex, Yara Tupynambá usará tinta acrílica para pintar a “Igreja São José em Noite de Ouro Preto”.

            Enquanto as pernas agüentaram a incômoda posição, fiquei ali, pescando os detalhes, embasbacado com a peça. Era de uma poesia única, um encanto próprio, e de uma técnica surpreendente: fora composta com o mais elementar par de cores: tinta preta sobre uma base branca. Um recurso aparentemente singelo, mas que somente alcança aquela beleza nos pincéis de um mestre. E Yara é um mestre de tal envergadura.

            A bem da verdade, essa arte binária, feita apenas em preto e branco, Tupynambá desenvolveu nos anos 60, quando se firmou no cenário nacional como uma gravurista de mão-cheia. Trabalhava preferencialmente com a xilogravura, técnica na qual se aperfeiçoou com Misabel Pedrosa e com o grande Oswaldo Goeldi. Na xilogravura, o artista toma de uma madeira, uma tábua, nela esculpindo as formas que serão impressas sobre o papel, como um carimbo. Faz o negativo, portanto, afirmando as formas por uma lógica do vazio e do cheio, do corte e do recorte, da presença e da ausência. No papel branco, a madeira imprimirá a tinta negra, num processo que, entre outros, sustentou por anos o fenômeno do cordel no Nordeste brasileiro. A excelência revelada por Goeldi e, depois, por Tupynambá, está na alternância da função desempenhada pela tinta negra que é impressa sobre o papel. Comumente, ela faz o contra-ponto ao papel branco: o negro dá a forma, o branco dá o espaço. O branco da o plano, o negro o recorte e, com ele, a materialidade figurativa do objeto. Goeldi e, principalmente, Yara Tupynambá têm a capacidade de alternar, numa mesma gravura, a função que o negro ou o branco cumprem: são num canto forma, no outro espaço. Não há, portanto, uma definição preliminar de que o preto cumprirá papel da existência e o branco da inexistência, ou vice-versa. Conforme o enredo da obra, em partes distintas, atribui-se a cada um essa ou aquela função. Para tanto, Yara lança mão da técnica cubista, recortando a figura em blocos diversos, permitindo, assim, a variação das funções entre um e outro naco do enredo pintado. Uma virtuose que dispensa a multiplicidade das cores e dos tons, mas que se completa na paleta singela do preto e do branco. O mais curioso nesses quadros de Yara é perceber que a cor é absolutamente desnecessária. Colorir seria um crime, pois atingiu-se a perfeição poética com a paleta simples de preto e branco.

            Yara Tupynambá é bom que se diga, não se amedontra com a multiplicidade de cores; muito antes pelo contrário. Tem inúmeros trabalhos onde usa da paleta inteira, completa em sua gama de cores. Esses matizes não são problema para si. Baús e estandartes, fachadas e suas mulheres, paisagens e, mais recentemente, a Serra do Cipó. Isso para não falar dos incontáveis painéis que pintou, como o que se vêem na Assembléia Legislativa, na Reitoria da UFMG e em tantos outros lugares.

            Sempre me perguntei como poderia definir a estética “yaratupynambasiana”, com o perdão do neologismo, outro vício do qual não consigo me livrar. É que não me sai da cabeça a forte impressão de que ela traduz em imagens a mesma estética das serestas, manifestação cultural tão mineira, como provam Diamantina, Montes Claros, Curvelo e outras tantas paragens que não poderei citar – só tenho 4.400 toques de textos, razão pela qual peço perdão a todas as localidades que acabei preterindo, inclusive o bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte. As pinturas de Yara são as que mais se aproximam da poética da seresta, dos valores impressos em suas cantigas, na postura dos seresteiros que avançam pelas madrugadas dessa terra encantada das Minas Gerais. Ninguém melhor do que ela para fazer a tradução pictórica desse hábito mineiro. Ninguém fez igual; ninguém faz; ninguém fará. Yara é única e a história já lhe tem páginas próprias.

(*) Por Gladston Mamede, advogado, professor de direito da UFMG, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
e titular da coluna de direito do Portal Brasil. E-mail: [email protected].

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