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A M E N T O
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Ensaio
sobre a lágrima
Por Tom Coelho
(*)
“Chora, Tistu, chora. É preciso.
As pessoas grandes não querem chorar, e fazem mal,
porque as lágrimas gelam dentro delas, e o coração fica duro.”
(Maurice Druon, em “O menino do
dedo verde”)
Sempre apreciei a expressão “olhos marejados”. É, para mim, de uma beleza
plástica incrível. Os olhos, as “janelas da alma”. E o mar, com seu ir e vir das
ondas.
Olhos
marejados são assim. Lágrimas que pensam em deixar o conforto dos olhos, mas que
se retraem como quem diz: “Ainda não é hora” ou, então: “Ainda não posso me
desnudar”.
A lágrima revela tudo. Insólita por natureza, carrega consigo dor, tristeza,
alegria, emoção. A lágrima marejada contém-se em si mesma. Ela é suficiente para
cobrir toda a superfície ocular. Faz os olhos brilharem, refletindo a
transparência da alma.
Hospitais são locais onde se tratam pessoas doentes. Construções de paredes
sólidas e áridas, brancas e gélidas. Uma arquitetura onde o calor naturalmente
se dissipa e onde as vozes ecoam assustadoramente – assim como as rodas e
rodízios das cadeiras e macas que perambulam pelos corredores.
Acho que um dia algum publicitário passou por um hospital e percebeu que ali
faltava algo. Resolveu, então, colorir as paredes das alas de pediatria,
instalar uma capela no térreo e criar um banco de sangue. Tudo isso para
humanizar aquele ambiente – porque o que lhe faltava era vida.
Ao contrário do que se faz supor, hospitais, e aqui excluo as maternidades, são
moradas não da saúde, mas da doença. A saúde reside no sorriso maroto de uma
criança, nas árvores que florescem na primavera, na conjunção erótica dos
amantes. Nos hospitais, habitados pela doença, a morte espreita, vagando
livremente, rindo-se com sarcasmo do sofrimento de internos e familiares.
Os profissionais – médicos, enfermeiros e assistentes – aprendem a ser heróis
sem coração. Heróis porque lutam contra a engenhosidade ardilosa da doença que
busca refúgio nos recônditos da complexidade do corpo humano, procurando
dificultar o trabalho de sua descoberta. É um jogo de caça, de esconde-esconde,
no qual o bem luta para triunfar enquanto o mal, uma vez instalado, dá-se por
vitorioso desde o início, nada tendo a perder.
Entretanto, por atuarem numa batalha tão desigual, muitas vezes patrocinada pelo
despreparo, pela desqualificação ou pela desestrutura, estes heróis aprendem a
dominar suas emoções. Afinal, são tantos dias, dias após dias, horas e mais
horas, enfrentando as adversidades, testemunhando a amargura velada ou
silenciosa de seus pacientes, acompanhando o desespero e, por vezes, o
destempero de familiares – que transitam com suas faces avermelhadas e seus
óculos escuros, e não em decorrência do esplendor do sol –, que tudo aquilo se
torna rotineiro. Cena do cotidiano.
Quando seu time de futebol vence uma partida, você fica feliz. Até esfuziante.
Cada gol é comemorado como se fosse único. Mas se a equipe se torna imbatível,
as conquistas perdem o sabor, porque se tornam previsíveis. A felicidade vira
alegria. A alegria vira desdém. Assim ocorre com a maioria dos médicos. A
sensibilidade se esvai, por hábito e por dever de ofício. E eu os respeito por
isso, porque seria incapaz de fazê-lo. Por esse motivo tomei como profissão a
mente, e não o corpo das pessoas. Fiz de um lápis, uma caneta ou um teclado meu
próprio bisturi.
Em uma manhã fria e cinzenta de novembro, de um distante, mas sempre próximo ano
de 2004, minha mãe nos deixou. Cinco anos depois, foi a vez de meu pai.
No combate à doença, em ambos os casos, não nos faltou empenho,
não nos faltou solidariedade, não nos faltou fé. Só nos falta a presença física
deles.
Os olhos já não estão mais marejados, porque as lágrimas decidiram que era hora
de se despir e ganhar o mundo. Tomaram formatos e feições diversas, algumas
discretas como o orvalho da manhã, outras intermitentes como garoa paulistana.
Por coincidência ou não, os céus, em sintonia, harmonia e deferência, também
derramaram suas lágrimas, por meio da chuva, anunciando a purificação, a
renovação e a mensagem de que a vida segue.
(*)
Tom
Coelho é educador, conferencista e escritor com artigos publicados em 17
países. É autor de “Somos Maus Amantes – Reflexões sobre carreira, liderança e
comportamento” (Flor de Liz, 2011),
“Sete Vidas – Lições para construir seu equilíbrio pessoal e profissional”
(Saraiva, 2008) e coautor de outras cinco obras. Contatos através do e-mail
[email protected].
Visite:
www.tomcoelho.com.br.
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