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- Direito & Defesa do Consumidor -
16 / janeiro / 2006


DIREITO CIVIL
A concepção social do contrato
Por Rogério Ferraz Donnini (*)

“Quando o direito é desalojado do lugar em que deveria estar, a injustiça não é a culpada desse fato, 
mas sim quem se conformou com essa situação.” (Rudolf Von Ihering)
.

Teoria clássica dos contratos

            A teoria clássica contratual tem como princípios fundamentais a autonomia da vontade, o consensualismo (aquele pelo qual o acordo de vontades manifestado pelos contraentes é suficiente à perfeição do contrato), a força obrigatória dos pactos, a relatividade dos efeitos dos contratos e a boa-fé. No entanto, os principais fundamentos desse modelo liberal de contrato, em que se dá a oferta e a aceitação, o livre consentimento e a igualdade formal das partes, são a liberdade de contratar (autonomia privada), a obrigatoriedade da convenção e os efeitos desta vinculando apenas os contratantes (princípio da relatividade), na medida em que o último princípio (boa-fé) sempre foi pouco aplicado e raramente lembrado nas relações contratuais.

            Esse sistema, adotado pelo Código Civil de 1916, estava amparado no liberalismo marcante de um período de estabilidade social, política e econômica. O contrato, inegavelmente, foi, nessa época, fundamental ao grande progresso econômico mundial, em especial dos países ocidentais, ao possibilitar mais segurança nos negócios, incrementando a lei da oferta e da procura, embora não tivesse protegido os socialmente mais fracos, o que se verifica das acentuadas diferenças sociais e econômicas. O liberalismo do século passado fez do contrato o mais importante dos negócios jurídicos realizados entre pessoas, vinculando as partes juridicamente, mas nem sempre de forma equânime, justa e ética.

            Nesse contexto, criou-se um modelo de contrato centrado em bases individuais, celebrado segundo uma igualdade formal, que faz lei entre as partes, e sua força é reconhecida no brocardo pacta sunt servanda. Assim, com fundamento no princípio da intangibilidade contratual (imutabilidade contratual), se os contratantes são livres para celebrar um contrato e o fazem, assumem todas as obrigações acordadas, segundo a vontade manifestada, devendo ser cumprido aquilo que foi acertado.

            Esse modelo de contrato, ainda preconizado por muitos, não mais atende às aspirações e necessidades da sociedade atual, haja vista que não se pode mais admitir uma relação contratual sem equilíbrio, iníqua, celebrada com ausência de boa-fé, ser considerada válida, sob o argumento de que existe a autonomia privada e as partes são livres para contratar.

            Na realidade, o perfil atual do contrato modificou-se. Abandonou-se o rigor de sua intangibilidade para adaptá-lo à nova realidade social, que busca, antes de tudo, uma relação equânime, justa entre os contratantes.

            A autonomia privada, diante do rigor excessivo do princípio da força obrigatória dos pactos, no final do século XIX e início deste, foi contida pela interferência do Estado nas relações contratuais, fato esse que já havia se iniciado antes, com a Revolução Industrial. Contudo, tornou-se mais evidente essa interferência estatal entre a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, surgindo, destarte, o que se denominou dirigismo contratual, limitando-se a liberdade de contratar, para que fossem evitados abusos em algumas relações contratuais.

            Essa limitação ao princípio da autonomia da vontade ocorreu pela interferência do Direito Público sobre o Privado, limitando, em determinadas relações contratuais, a liberdade de contratar. Nesse campo intervencionista é que se situa a teoria da imprevisão, que flexibilizou o princípio da intangibilidade contratual.

A comutatividade e a boa-fé

            No modelo liberal de contrato a idéia de comutatividade e o princípio da boa-fé foram relegados ao abandono. O primeiro está intimamente ligado à própria noção de contrato, na medida em que é a comutatividade uma das espécies fundamentais de justiça, ao lado da distributiva e da social. Quando se fala que a definição de contrato e comutatividade devem estar vinculadas, quer-se afirmar que deve existir equilíbrio entre as prestações na avença firmada entre os contraentes.

            Não se deve, assim, pactuar da máxima “quem diz contratual, diz justo”, do direito francês, pois avenças firmadas contrariamente à noção de eqüidade e respeito à dignidade humana não podem ser consideradas lícitas.

            O princípio da boa-fé, posto acolhido como um princípio fundamental do direito contratual, tem sido esquecido por ocasião da formação do contrato ou mesmo na sua interpretação e execução.

            Ao contrário dos Códigos Civis italiano, francês e alemão, inexiste no brasileiro, de 1916, dispositivo específico atinente à boa-fé. Não são poucas as normas da parte geral dos contratos no Codice Civile italiano que fazem referência ao princípio da boa-fé. O artigo 1366 prevê que o contrato deve ser interpretado segundo a boa-fé. Quando da tratativa e responsabilidade pré-contratual, estabelece o artigo 1337: “Trattative e responsabilità precontrattuale. – Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede". Em outro artigo desse mesmo código está estatuído que o contrato deve ser realizado segundo boa-fé (art. 1335). Na legislação peninsular, o princípio da boa-fé é considerado uma regra áurea das obrigações (art. 1175).

            Em França, o Código Civil dispõe que os contratos devem ser executados de boa-fé. O artigo 1134 do Code Napoléon estabelece, no que se refere à execução dos contratos, o seguinte: “Elles doivent être exécutées de bonne foi”.

            A lei civil substantiva tedesca (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) adotou expressamente o princípio da boa-fé. O  § 157 estatui que “os contratos devem ser interpretados como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinada segundo os usos”. No mesmo sentido o § 242 do BGB reza que “o devedor é obrigado a efetuar sua prestação como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinada segundo os usos.” No direito alemão, portanto, esse princípio transformou o direito obrigacional clássico, exigindo dos contratantes, na formação do pacto, honestidade, lealdade e probidade.

            Embora não haja no Código Civil brasileiro de 1916 disposição expressa sobre a boa-fé, trata-se de princípio geral do direito contratual, que não está ligado somente à interpretação do contrato, estampada no art. 85 do CC, mas também na formação da avença, pois o contratantes deverão sempre agir com lealdade e confiança recíprocas.

            Há quem sustente ter sido pouco aplicado o princípio da boa-fé nas relações contratuais, diante da falta de uma disposição expressa no Código Civil. Não seguimos essa posição, visto que o princípio da força obrigatória dos pactos também não possui qualquer dispositivo, mas decorre na própria natureza do contrato. A boa-fé, por ser um princípio fundamental, deve sempre nortear qualquer relação contratual.

            Portanto, na relação contratual celebrada entre particulares podem e devem ser invocados a idéia de comutatividade (equilíbrio nas prestações) e o princípio da boa-fé, para que seja atingido o ideal de justiça contratual.

O contrato e sua concepção social no CDC e no novo Código Civil

            O princípio da autonomia da vontade não autoriza que se pactue contrariamente aos ideais de justiça. Essa é a função social do contrato, hoje enaltecida, mas que sempre deveria ter existido nas relações contratuais, pois está intimamente ligada à idéia de comutatividade ou justiça comutativa. Na realidade, a função social do contrato sempre fez parte da teoria contratual. Só não foi utilizada porque se acreditava que ela seria obtida pela simples atuação dos contraentes, o que não aconteceu satisfatoriamente.

            A noção de contrato estampada no Código Civil de 1916 é aquela de um acordo de vontades centrado em bases eminentemente individuais, prevendo uma igualdade formal dos contratantes. Todavia, é inegável que o contrato modificou-se ao longo do tempo, seja no seu conteúdo, seja nas suas funções, em razão da própria transformação da sociedade, a partir da Revolução Industrial. Houve o que se denominou massificação da sociedade. Em sendo assim, novas formas de contratação, como os contratos de adesão, os padronizados e mais recentemente os eletrônicos, surgiram e, como conseqüência, o tratamento clássico para as relações contratuais tornou-se ineficaz, por permitir que acordos iníquos, com absoluta ausência de boa-fé, fossem convalidados, sob o argumento constante do brocardo pacta sunt servanda, ou no menos utilizado contractus ex conventione partium legem accipiunt (os contratos são lei por convenção entre as partes).

            A crise no sistema contratual da sociedade moderna fez com que se chegasse a proclamar a morte do contrato. No entanto, o que houve foi sua transformação, que se deu pela interferência direta do Direito Público sobre o Direito Privado, com a criação de normas cogentes para regular algumas avenças, como, verbi gratia, os contratos de consumo.

            Independentemente da discussão a respeito da publicização do Direito Civil, o legislador pátrio, ao criar o Código de Defesa do Consumidor - CDC (Lei 8.078/90), cumpriu os exatos termos da Constituição Federal, que no art. 170 estabelece, como princípio constitucional, a defesa do consumidor.

            Com efeito, os contratos de massa, celebrados entre consumidores e fornecedores, antes do advento do CDC, tinham um tratamento inadequado do Código Civil de 1916, que tratava as partes segundo uma igualdade formal, realizando uma evidente função individual. A moderna lei consumerista modificou os princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória e da relatividade dos contratos, criando uma verdadeira revolução doutrinária, provocando a alteração de verdadeiros dogmas do Direito Civil, além de criar novos símbolos e uma nova linguagem.

            O CDC limitou a autonomia da vontade, evitando, assim, os abusos que eram cometidos pela parte mais forte na relação contratual, tratando, ainda, as partes com evidente desigualdade, atingindo uma isonomia real. A imutabilidade contratual também sofreu transformações, na medida em que foi relativizada, além de se tornarem expressos os princípios da boa-fé e da eqüidade, o que possibilita a revisão do contrato se este for celebrado sem a observância desses princípios.

            O contrato de consumo, inegavelmente, tem uma função social clara, visto que tem finalidades que vão ao encontro da aspiração da coletividade, numa relação que busca, antes de tudo, o equilíbrio, a boa-fé objetiva, a transparência e a realização da justiça contratual.

            O novo Código Civil dispõe em seu art. 421, o seguinte: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Pode-se afirmar que a intenção do legislador foi a de superar a noção individualista do direito contratual, buscando, destarte, o ideal de justiça, por meio da concepção social do contrato.

            No que tange à boa-fé (objetiva) nas relações contratuais, nossa novel lei civil substantiva estabelece, no art. 422 o seguinte: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”  O mesmo passa a ser exigido na interpretação dos contratos. O art. 113 reza: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

A constituição federal e o modelo liberal de contrato

            A Constituição Federal de 1988 interferiu e, ipso facto, alterou sobremaneira nosso Direito Privado e o modelo clássico de contrato, baseado em interesses individuais. Essa interferência vem sendo denominada constitucionalização do Direito Civil, fato esse que tem propiciado o estudo deste à luz do Texto Constitucional. E o direito contratual, a exemplo do que ocorreu com outras áreas do direito, vem-se transformando e adaptando a essa visão e determinação constitucionais.

            Embora a livre iniciativa esteja prevista no caput do art. 170 da Constituição Federal, está ela associada à valorização do trabalho humano, na existência digna, consoante os ditames da justiça social. Esta, por sua vez, para ser atingida, importa na redução das desigualdades regionais e sociais.

            Há, também, o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana, inserido no art. 1° da Constituição Federal, incompatível com disposições contratuais desiguais, em que impere a ausência de boa-fé objetiva, transparência e equilíbrio.

            Portanto, todo contrato que cause a qualquer dos contraentes um aviltamento da dignidade humana estará ferindo um princípio constitucional fundamental (CF, art. 1°, n° III), visto que o Direiro tem por escopo buscar sempre o respeito à dignidade do homem.

            As relações contratuais firmadas entre particulares, posto não estejam reguladas pelas normas do CDC, estão sujeitas à Lei Maior, que não mais admite contratos que não realizem a função social.

            Dessa forma, não deve ser considerado lícito um contrato firmado com fins anti-sociais e com a intenção de ofender interesses protegidos por normas constitucionais. O negócio jurídico, nessas condições, é considerado ilícito, por ofender interesses sociais que podem ser de toda sociedade, ou pela defesa dos bons costumes e valores sociais, previstos na Constituição Federal.

Conclusão

            Em observância ao princípio da boa-fé, à idéia de comutatividade e ao princípio fundamental da dignidade humana (CF, art. 1°), não mais se admite um contrato celebrado sem uma concepção social.

            Nas relações de consumo, reguladas pelo CDC, essa função social do contrato é evidente, na medida em o tratamento dado às partes (fornecedor e consumidor) é mais equânime e, por via de conseqüência, mais justo. O equilíbrio, a boa-fé objetiva, a transparência e a realização da justiça contratual são a tônica dos contratos de consumo.

            O Código Civil de 1916, embora centrado em bases individualistas, tem como um dos princípios fundamentais da teoria clássica contratual o da boa-fé, tão importante quanto os demais (atonomia da vontade, consensualismo, força obrigatória dos pactos e relatividade dos efeitos dos contratos) e que deve sempre estar presente na formação e execução do contrato.

            Diante do disposto na Constituição Federal, em especial nos arts. 1° 170 e 5°, n° XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), não mais se pode conceber um contrato em que impere o desequilíbrio, a ausência de boa-fé e eqüidade, a vantagem exagerada para um dos contraentes e o prejuízo acentuado para o outro, mesmo nas relações firmadas entre particulares, que continuam a ser reguladas pelo Código Civil.

            Há uma gama de dispositivos legais que permitem ao aplicador da lei restabelecer o equilíbrio na avença. Além do Texto Constitucional, o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) pode ser invocado, assim como o art. 29 do CDC. Este último equipara consumidores a todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas abusivas, incluindo-se a proteção contratual. Desta forma, mesmo numa relação entre particulares como, por exemplo, um contrato com cláusulas consideradas abusivas, pode ser revisto o pacto, com fundamento na legislação consumerista. Para as questões contratuais entre particulates que surgiram após 10 de janeiro de 2003 (entrada em vigor do novo Código Civil), o tratamento é mais moderno e equânime, diante da evidente e expressa concepção social do contrato.

(*) Professor concursado da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nos cursos de Graduação e Especialização, nas cadeiras de Direito Civil e Direito do Consumidor. Mestre e doutorando em Direito pela PUC-SP. Advogado em São Paulo. (Texto publicado, com algumas alterações, na obra Temas Atuais de Direito Civil na Constituição Federal (Org. Rui Geraldo Camargo Viana e Rosa Maria de Andrade Nery), R.T., 2000, p. 69/79).

(**) Texto adaptado publicado originalmente no site "Gente, Vida e Consumo". Todos direitos reservados ao seu autor.


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