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R E L I G I Ã O
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  /  S E T E M B R O  /  2 0 0 9

UM DIA DE MORTE
Excepcionalmente por Tito Barros

            Ela acordou com o barulho do rádio-relógio, que parecia cantar de maneira risonha “O pulso ainda pulsa...”, dos Titãs. Por instinto, sua mão esquerda - que não largava a foice nem durante o sono - voou em direção ao aparelho e o espatifou com a lâmina afiadíssima, que de quebra ficou presa na madeira da cômoda. Ela, brava consigo mesma e murmurando reclamações, sentou-se na cama e desprendeu a foice sem muito esforço.

            Era mais uma manhã na vida (?) de Morte - Morte Silva, muito prazer. O café da manhã nunca era nada de mais, Morte não tem fome quando acorda. Pegou uma fatia de queijo na geladeira, sentou à mesa e usou a foice para cortar um pão ao meio. Ela não entendia o preconceito quanto ao seu instrumento de trabalho, que na verdade lhe era muito útil nas situações mais improváveis. Certa vez, quando estava na praia lendo um livro (enquanto esperava uma vítima de afogamento), o vento quebrou o cabo do seu guarda-sol. Ela o substituiu pelo cabo de sua foice, e nunca viu um guarda-sol mais firme. Sensacional.

            Morte engoliu o sanduíche e saiu apressada para o trabalho. Seu endereço é um segredo que ela não revela a ninguém por medo de receber infinitas correspondências, como o Papai Noel - mas talvez com pedidos um pouco diferentes. Só é certo que ela mora em algum lugar no Japão, que é onde prefere começar sua jornada diária já que lá o sol nasce primeiro no mundo. E há quem se pergunte se a ampla produção de filmes de terror no país tem alguma ligação com sua habitante menos ilustre. Quando a Morte está dormindo, o mundo para esperando-a acordar. Isso porque as pessoas não tem uma hora marcada no dia para morrer, o que ela considera que seria um grande avanço para a humanidade e reduziria consideravelmente sua carga horária.

            Era um domingo de verão no Japão, e ela estava satisfeita com sua nova roupa e capuz pretos feitos com um tecido esportivo que ajudava na transpiração corporal. Finalmente! Aquele robe de trapos pretos já estava extremamente ultrapassado e fazia seu desodorante vencer antes do meio-dia.

            Depois de recolher alguns velhinhos que amanheceram mortos pelo Japão, ela bateu com o pé da foice no chão e seguiu por tele-transporte para o próximo lugar de sua lamentável “colheita” pelo mundo. O mais comum é ela aparecer só nos segundos finais de cada pessoa. Quando acontece de morrer gente ao mesmo tempo em locais muito distantes, a Morte é forçada a voltar uns segundinhos no tempo enquanto se tele-transporta. Como que por um sexto sentido, ela sempre sabe em que parte do mundo está. Só sobra tempo para esperar o momento do óbito quando ela faz alguma conta errada ao calcular o tempo que precisa voltar (ou simplesmente quando ela está afim, como na vez da praia com a foice-guarda-sol).

            O dia foi passando: um sueco com problemas no pára-quedas, uma mulher com complicações durante o parto na China, dois idosos que cochilavam depois do almoço em asilos diferentes da Flórida, uma paciente de câncer no Canadá, estudantes que protestavam contra o governo no Irã, aidéticos em diferentes países da África, passageiros de um ônibus que saiu da pista e capotou descendo a serra de São Paulo, um idoso que levou um tombo e quebrou o pescoço ao tentar resgatar seu papagaio de uma árvore na Colômbia... Essa é sua rotina, ela aprendeu já há alguns milênios a ignorar a tristeza e o desespero que geralmente a acompanham em suas visitas. Mesmo os suicidas, que teoricamente vão de encontro a ela, sempre acabam chorando amargas pitangas de arrependimento no final.

            Já à noite, depois de buscar a alma de um jovem que morreu atropelado na Namíbia, Morte estava bastante cansada. Ela tinha que ir a uma cidadezinha do Peru voltando um pouco no tempo, e se deu 20 minutos de crédito para descansar.

            Chegando lá, ela viu o bairro pobre repleto de casinhas mal-acabadas. Seu destino era uma delas, ligeiramente maior e que mostrava uma cruz sobre a porta. Bom que eles podem aproveitar e fazer direto o velório do falecido, pensou.

            Morte sabia que seu alvo era um velhinho de 92 anos. Ao ver a reunião de mais ou menos 20 pessoas, pensou que fosse encontrá-lo ao fundo, tossindo em um ataque de asma ou coisa assim. Não. Ele estava no lugar de destaque, em pé em um degrau à frente, falando plácido e com um sorriso no rosto. Não havia sinal de tristeza.

            Ao sentar-se ao fundo, Morte começou a ouvir o que ele dizia. E se surpreendeu ao perceber que o tema era justamente ela mesma. “La Muerte para mí será muy bienvenida, y sé que ella está por pierto. iElla va a traerme la buena nueva de que es la hora de encontrarme con Jesus!” Morte se agachou um pouco na cadeira envergonhada, bobamente acreditando que alguém a veria.

            Ela lembrava desse tal Jesus. Os dois passaram uns dias juntos rodando por aí. Um cara legal pra caramba que teve uma das mortes mais injustas que ela podia lembrar. Talvez por isso ele a enrolou por três dias e depois voltou por conta própria, deu um passeio pelo mundo e subiu aos céus sem precisar de mapa ou ajuda. E ela se gabava achando ser a única que sabia o caminho...

            Antes de se retirar para um quartinho nos fundos, o homem olhou exatamente nos olhos da Morte, deu um sorriso singelo e saiu. Ela ficou paralizada e branca (ela nunca foi muito bronzeada) imaginando ter sido vista, quando ouviu uma menininha gritar “abuelito!” (“vovô” em espanhol) e acenar logo atrás dela. Ufa. Morte o seguiu para o quarto, que era realmente pequeno, e encontrou seu corpo ajoelhado com a testa ao chão. Seu espírito já vinha em sua direção, sorridente e de braços abertos, apertando-a num abraço.

            Os dois saíram da igrejinha como velhos amigos saindo do bar. Morte se sentia importante e feliz de fato, entregando a melhor notícia que aquele senhor podia esperar. Enquanto isso, a garotinha descobria o corpo do avô no chão e abraçava suas costas com alegria, sem saber que ele já havia partido. Não fazia diferença.

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